Vladimir Soloviev |
Caro Amigo, ofereço-lhe estas reflexões, que faço baseadas num belo texto do jornalista André Monda sobre Vladimir Soloviev (1853-1900), aparecido no L’Osservatore Romano de 8 de março de 2008. Ei-las:
No seu "Breve Conto sobre o Anticristo", Soloviev narra sobre um homem dotado de virtudes extraordinárias: um grande progressista, humanista, pacifista, ecumenista e espiritualista, que consegue reunir e pacificar definitivamente a humanidade e sabe também proporcionar a unidade aos cristãos divididos por séculos de separações e cismas. Porém, a sua obra é impedida e no final derrotada, porque esta personagem é desmascarada como o Anticristo graças à resistência de um núcleo irredutível de cristãos, que não aceitam negociar sua fé em favor de idéias bonitas nem sacrificar no altar do conformismo, do irenismo, de certo ecumenismo, a simples certeza da adesão a Cristo.
Por conseguinte, para Soloviev, o Anticristo é um ecumenista, um pacifista e um promotor da tolerância. É importante observar que o próprio Soloviev foi, precisamente, tudo isto: um homem ecumênico, que soube perdoar os inimigos e pleno de tolerância. Então, por que coloca todas estas qualidades no Anticristo? Para nos prevenir profeticamente: Quem quer que seja, mesmo um “bom cristão”, se não se apegar a Cristo e se perder na simples atividade de um bem apenas humano é, potencialmente, o Anticristo.
O filósofo russo chama a atenção de um modo paradoxal e profético para o ponto fraco de muitos cristãos, de cada cristão, quando perde de vista a essência e o elemento qualificador da sua própria fé que é, em primeiro lugar e antes de qualquer outra coisa, a fé em Cristo.
O Anticristo da narração de Soloviev é tal, ou seja Anticristo, porque acredita nos valores de Cristo sem Cristo e, em última análise, não crê sequer nos valores enquanto tais, mas nos valores estabelecidos por ele mesmo, de tal forma que no fundo acredita somente em si próprio; e lá onde era possível o encontro do homem com Deus, agora há somente o vazio, um vazio que tanto hoje como na época de Soloviev nunca acaba de ameaçar um mundo que se julga capaz de se salvar sozinho.
O verdadeiro drama do homem encontra-se na ideologia, no fato de crer nas idéias e não na realidade. Também as idéias cristãs, enquanto idéias, podem tornar-se causa de violência e de desolação, se forem seguidas sem uma adesão real e concreta à Pessoa de Cristo. Este é e será sempre o divisor de águas entre o verdadeiro cristianismo e uma maldita ideologia que usa a Pessoa de Cristo e o nome do cristianismo e da Igreja para enganar e perverter: o cristão não crê primeiro em valores ou em idéias, não ama programas e ideais: seu compromisso, seu amor, sua adesão referem-se sempre e somente a uma Pessoa concreta: Jesus de Nazaré, chamado Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, único e absoluto Salvador da humanidade!
A caridade, que para os cristãos, é uma virtude teologal, ou seja, uma dádiva de Deus, não constitui uma prática humana, uma simples filantropia. Não é fruto de uma grande idéia nem de uma filosofia.
Os cristãos não se devem inspirar nas ideologias do melhoramento do mundo, mas deixarem-se guiar pela fé que atua pelo amor; a caridade é sempre algo mais do que mera atividade. A ação prática resulta insuficiente se não for palpável nela o amor pelo homem, um amor que se nutre do encontro com Cristo.
A experiência da incomensurabilidade das necessidades pode, por um lado, fazer-nos cair na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus, pelo que se vê, não consegue: a solução universal de todo problema). O que foi o século XX, senão a ilusão de ter encontrado a solução universal de todo o problema? Uma ilusão trágica, que prometeu paraísos e realizou infernos.
Alguns setores da Igreja atual, por vezes, são tentados a tal redução! Pensa-se, então, que a missão da Igreja é resolver os problemas da humanidade, ser o baluarte de programas humanísticos e ser guardiã da paz e fraternidade universal. E para ser aceita e aplaudida aos olhos do mundo e reconhecida como promotora de tão boas ações, cala-se o essencial: Jesus Cristo, a Quem devem todos se converter; Jesus Cristo, o único que nos dá o único necessário: a Vida eterna.
Assim, o grande engodo, a miserável ilusão, é fazer o cristianismo passar de religião à ideologia e a Igreja, passar de igreja à ONG humanística politicamente correta. É esta a obra satânica do Anticristo; é este o perigo bem mais próximo e concreto que possamos imaginar... Basta olhar com atenção ao nosso redor.
Nesta visão medonha, o centro da vida do cristianismo e da Igreja já não é o louvor a Deus, o culto como adoração e salvação do homem, mas o próprio homem, que se torna falaciosamente medida de todas as coisas: e medida do culto (transformado em festa e autocelebração da comunidade satisfeita consigo mesma), a medida da moral (relativizada e reduzida ao politicamente correto), a medida da doutrina (esvaziada e deturpada para satisfazer as exigências da mentalidade do mundo de cada época)...
Soloviev condena a atrocidade do coletivismo tirânico com suas palavras proféticas: “O mundo não deve ser salvo com o recurso à força. É possível imaginar que os homens colaborem em conjunto para uma grande missão, e que com ela se relacionem e lhe submetam todas as suas atividades particulares; mas se esta missão lhes for imposta, se representar para eles algo de fatal e de incumbente então, mesmo que tal unidade abrangesse a humanidade inteira, não se alcançaria a humanidade universal, mas tratar-se-ia apenas de um enorme formigueiro”. Estas palavras do grande Pensador são uma denúncia profética contra toda tirania das ideologias, contra todo patrulhamento ideológico, contra toda tentativa de pensamento único, que suprime a priori qualquer um que não pense como a maioria.
Olhando a Igreja Soloviev reconhecia três “heresias mundanas” no interior do cristianismo do final do século XIX e no de hoje ainda: o sectarismo ético que reduz o cristianismo unicamente à moral; a heresia doméstica, que reduz o cristianismo em chave sentimental e intimista e o reencarnacionismo, entendido como seita religiosa e não como investigação científica, uma heresia baseada na confusão entre o mundo humano e o mundo divino, que anula, portanto, aquela unidade na distinção que é típica da estrutura constitutiva do humano. Esta última heresia é bem representada na narração da personagem do mago Apolônio, inquietante colaborador do Anticristo, capaz de fazer dialogar o mundo dos vivos com o dos mortos: em que consistia o reencarnacionismo, senão nisto? É o desmascaramento de uma tentativa presunçosa de esgotar o sentido da vida, de conhecer os mistérios da existência e de controlar o futuro. É o contrário do que diz a Escritura: “As coisas reveladas pertencem aos homens; as escondidas pertencem ao Senhor” ou o que diz a estupenda bênção judaica: “Bendito sejas Tu, Senhor, nosso Deus, que guardas os segredos!” Quando o homem já não aceita o Mistério acima dele e já não compreende que a realidade sempre irá ultrapassá-lo, mas isso não lhe deve causar temor, pois que uma Mão bendita guia os acontecimentos, então ele próprio se angustia, se desespera e se embrutece.
Na figura do Anticristo é fácil ver o emblema , como que a personificação da religiosidade confusa e ambígua destes nossos anos. Em relação a Cristo, não haverá uma hostilidade de princípio; pelo contrário, apreciará o Seu elevadíssimo ensinamento. Mas não poderá suportar a Sua unicidade absoluta e, por conseguinte, não se resignará a admitir e a proclamar que Ele ressuscitou e hoje está vivo. Neste sentido, é terrível a frase que repete histericamente: “Ele não está entre os vivos e nunca estará. Não ressuscitou... Apodreceu, apodreceu no sepulcro...”
Os verdadeiros cristãos, no entanto, dirão sempre, com mansidão e invencível convicção: Ele está vivo, Ele está entre nós, Ele é o único Deus, Senhor e Salvador, ontem, hoje e por toda a eternidade!