sábado, 28 de novembro de 2015

Notas sobre o Distributismo - Alceu Amoroso Lima


''O fundamento da sociologia e da economia nos grandes sistemas filosóficos medievais, especialmente no tomismo, é sempre o mesmo -- o bem comum. É a equivalência social do senso comum, base da filosofia medieval e cristã. A medida das regras econômicas, como das regras políticas, é sempre esse bem comum. É uma sentença que encontramos a cada passo entre todos os que, na era medieval, se ocupavam com problemas sociais. O que governa a filosofia da sociedade e a organização política dos Estados é o bem de todos, o bem coletivo, o bem comum, e não o bem de um só, o bem individual, o bem próprio. É uma sociologia absolutamente anti-individualista, que começa por dizer ao soberano que a sua permanência no poder só se justifica enquanto bem proceder à finalidade da sua função, que é o benefício da coletividade -- e termina por exigir sempre do indivíduo o cumprimento do seu dever social. A economia medieval é governada pelo mesmo princípio do bem comum e o seu funcionamento está cuidadosamente subordinado a toda a sorte de princípios morais e de regras corporativas. (...)

A economia medieval, baseada, em parte, nos princípios da sociologia cristã, tendia sempre à liberdade individual justa, ao valor do salário justo, ao preço da mercadoria justo. As regras da justiça e da caridade, isto é, regras morais presidiam à organização econômica. E o resultado (...) foi que no fim da Idade Média não só a escravidão, como a própria servidão estavam praticamente abolidas e a vida social e econômica se fundava numa classe agrícola livre e proprietária dos seus instrumentos de produção. (...)
Alceu Amoroso Lima

Com a Revolução Industrial inglesa, que logo se espalhou pelo continente, deslocando o eixo econômico da agricultura para a indústria, voltou a dominar o conceito romano de propriedade em oposição ao conceito cristão. O predomínio crescente do direito romano, na Idade Média, foi particularmente sensível nessa substituição do conceito de propriedade, que passou a ser um conceito absoluto e individual, em lugar do direito relativo e social que era.

A propriedade, segundo o direito cristão, era um direito relativo. Ao homem não cabia de forma alguma o 'jus utendi et abutendi', que aliás já em Roma não recebia adesão de todos os juristas, mas veio a constituir o conceito básico da propriedade do liberalismo econômico. Tanto é certo que o paganismo moderno, em sua desespiritualização do mundo, vai muito mais longe do que o paganismo antigo, que era profundamente penetrado do sentimento de sacralidade de todas as coisas humanas.

O conceito de propriedade, segundo o direito cristão, era o de um usufruto dos bens. Só há no mundo um proprietário absoluto -- Deus. Nossa propriedade não é mais do que uma administração dos bens terrenos para os fins determinados por Deus. Logo, não há direitos da propriedade contra os direitos da justiça distributiva. E os teólogos distinguem nitidamente entre posse e uso, mostrando que, se o uso da propriedade é individual, a posse é social. Logo, o direito de propriedade além de relativo é social. Existe para o bem geral. O que equivale a dizer que não há direito de propriedade contra o bem comum, que é a medida dos bens próprios. Ora, nós já vimos como essa deslocação do bem comum para o bem próprio, como medida do bem coletivo, foi o grande desvio inicial da economia moderna. E dele ia nascer o capitalismo, isto é, o predomínio dos direitos do capital sobre os direitos do trabalho. (...)

O capitalismo, por sua vez, -- expressão econômica do primado do indivíduo sobre a sociedade quando o socialismo era o primado da sociedade sobre o indivíduo -- esse capitalismo nascia anarquicamente, sem doutrina certa, baseado apenas no êxito formidável que a introdução das máquinas mecânicas, em grande escala, tinha trazido ao desenvolvimento econômico do Ocidente, e principalmente da Inglaterra. É a essa forma inicial de capitalismo que podemos dar o nome de capitalismo empírico ou instintivo, governado apenas pelo instinto do lucro e pelo desejo de elevação social.

A filosofia naturalista da vida vinha, portanto, colocar a economia sobre a base única do interesse. Vinha dividir a sociedade em duas classes antagônicas e cada vez mais afastadas entre si, pois a matéria é um princípio de divisão e essa filosofia naturalista não podia confiar no espírito, no qual não acreditava, e julgava encontrar na matéria, na vida material, na própria vida econômica de desfrutamento dos bens concretos, o laço de união entre os homens. A filosofia naturalista da vida vinha excluir os valores espirituais do plano da vida econômica. E tanto o socialismo utópico como o capitalismo instintivo seguiram uma marcha de desespiritualização crescente (...). A história econômica do século XIX é a luta nas trevas de dois irmãos que se ignoram. (...)

O distributismo na sua base filosófica e psicológica não é mais do que uma solução para o problema social, partindo da existência de valores morais e humanos que prevalecem sobre os valores puramente econômicos. Ao passo que o capitalismo e o socialismo consideram o homem um ser dominado apenas pelos seus interesses materiais, -- homo aeconomicus em toda a sua pureza artificial, -- o distributismo considera-o como um ser composto, para o qual os interesses materiais e morais se compenetram, se distribuem, dominam alternada ou conjuntamente. (...)

E quanto aos fatores propriamente econômicos, o que distingue nitidamente a solução distributista é que se funda na disseminação intensiva da pequena propriedade, quer industrial, quer agrícola e comercial. Tanto o capitalismo quanto o socialismo se fundam na concentração da propriedade. Naquele, a concentração em mãos da plutocracia; neste a concentração em mãos do Estado proletário. O distributismo, ao contrário, baseia-se na disseminação da propriedade.

O capitalismo aboliu praticamente a propriedade, pois o que a nossa própria sociedade nos mostra, sendo embora uma sociedade de capitalismo empírico, é o espetáculo de maiorias absolutas de não-proprietários em face de uma minoria insignificante de proprietários. Para um regime que se alicerça doutrinariamente na propriedade, como pretende fundar-se o capitalismo, não pode haver melhor confissão de seu completo fracasso.

O socialismo, por seu lado, aboliu doutrinariamente a propriedade, e vai passando, legalmente, ao regime da nacionalização integral dos bancos, das indústrias e do comércio.

Pois bem, o distributismo o que quer é restaurar a propriedade, não como direito individual, no sentido jurídico romano, mas como função social, no sentido jurídico cristão.''

- Alceu Amoroso Lima
''Preparação à sociologia'', edit. Getúlio Costa, Rio de Janeiro, 1942

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